27/12/2013

Intertextualidades - Florbela por Al Berto

[Quinta de Santa Catarina (fragmentos de um diário): 1979/80]






Paisagem alentejana - Amieira (Monsaraz)
Fotografia de Gonçalo Godinho, em Olhares.sapo.pt



amo as águas no instante em que não são do rio
nem pertencem ainda ao mar
árduas planícies rosto incendiado pesando-me nos ombros
hirto... tatuado no entardecer de magoada cocaína

leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor
noturna sombra de corpo embriagado
fogos por descuido acesos no húmido leito de juncos
altíssima margem...inacessível noite de Florbela

e o soneto dizia:     Sou aquela que passa e ninguém vê
                                  Sou a que chamam triste sem o ser 
                                  Sou a que chora sem saber porquê

apesar de tudo conheço bem este rio
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico
dos reduzidos seres marinhos esmagados
na pressa do mar… possuo este resíduo de vida estelar
gravada na pele está a cabeça de medusa loura… dói
nas comissuras penumbrosas das falésias que me evocam
os ternos lábios das grandes bocas fluviais

sinto o rigor das plantas eretas as vozes esparsas
os corpos de ouro enleados na violência das maresias
junto à foz de meu insegura desaguar... continuo sentado
escrevo a desordem urgente das horas... medito-me
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se
o desejo de fugir

espero o cortante sal-gema das ilhas... a ilusão
de me prolongar na secreta noite dos peixes
adormeço
para que estes dias aconteçam mais lentos
nas proximidades inalteráveis deste mar

Al Berto



«2. / 1979» – texto de “Quinta de Santa Catarina (fragmentos de um diário): 1979/80”, in “Livro sexto: 1978/83: Salsugem”, de O Medo: trabalho poético 1974-1990. Lisboa: Contexto /Círculo de Leitores, 1991, p. 270.

[Post adaptado do divulgado por Custódia Pereira em Florbela Espanca, ser em poesia, grupo do Facebook.]