08/12/2013

Conhecer a obra de Florbela Espanca – revelação e homenagem

1.     Anúncio

          Seis sonetos inéditos – e até hoje desconhecidos – da poetisa Florbela Espanca (1894-1930) foram divulgados na sede da Associação Nova Acrópole, em Lisboa, no dia 6 de dezembro, às 19 horas, através da conferência-recital «Os Poemas Inéditos de Florbela Espanca». A conferência foi proferida por José Carlos Fernández, autor da biografia Florbela Espanca – A Vida e a Alma de uma Poetisa (2011); os poemas – éditos e inéditos – foram ditos pelos jovens do Grupo de Poesia Florbela Espanca da Nova Acrópole.

2.     O local da revelação

          O centro lisboeta da Nova Acrópole fica no quarto andar do n.º 17 da Av. António Augusto Aguiar, elevado, “mais alto”. À porta do edifício encontrei um casal com um filhote, que pensei ser ali residente e que avançou à minha frente; logo depois subi no elevador acompanhado de um ex-ministro – se não lhe reconheci logo o currículo, agradeci a delicadeza de trato. Encontrámo-nos todos, público diverso, na sala da conferência-recital. Em contrapartida, reconheci a bela atriz que deu corpo e alma – e muito talento! – a Florbela no grande ecrã: Dalila Carmo. Feminina e deslumbrante, também ela aguardava ouvir os frescos versos da poetisa.
          Numa sala ampla e confortável, entre plantas naturais e ornamentos natalícios, destacava-se em frente a máxima filosófica «conhece-te a ti mesmo», fazendo jus ao lugar de descobertas visando o enriquecimento do Ser Interior.
          Os 36 lugares sentados foram rapidamente ocupados e o restante auditório repartiu-se pelo espaço envolvente – sessão esgotada. Florbela Espanca e a sua obra continuam um “astro que flameja” para muita gente.

3.     A conferência



          O professor José Carlos Fernández é alguém habituado a estes convívios e a tornar comum o seu saber, as suas descobertas e, neste caso, a contagiar verbalmente o auditório com o seu conhecimento e amor pela poesia de Florbela. Na sua apresentação da obra florbeliana e a divulgação dos novos textos agora trazidos a público, compôs um retrato belo e bastante místico da autora de Charneca em Flor (1931).
          Como diretor de uma organização filosófica em Portugal e, portanto, por formação e também interesses culturais – destacaria áreas como a Espiritualidade, a Simbologia, a Oratória – é coerente que J. C. Fernández nos traga para os Estudos Literários uma perspetiva valorizada por essa mesma fundamentação. Neste sentido, a poetisa calipolense surge na preleção do orador – e esse é um dos poderes encantatórios do canto florbeliano, sabemo-lo também nós – como a “encarnação da Poesia”, um ser com “alma poética”. Verdadeira “sacerdotisa da beleza”, é uma autora “iluminada”: mesmo tendo (re)escrito versos, é como escritora inspirada, veículo transmissor de um verbo (quase) divino que só a poucos se dá revelar, que nos surge retratada. Uma visão romântica (e que dizer da defesa de Platão no Íon?) da criação poética – sem dúvida!, mas também atual e possível, pois o “mito Florbela” persiste. Se a sua arte poética é inegável, a sua perspetivação pelo leitor como uma extraordinária poetisa e uma genuína tradutora do sentir da alma humana continua irrecusável.
          Quando fora interpelado sobre se haveria novidade nestes poemas inéditos de Florbela Espanca, J. C. Fernández respondera, como agora reportava, que se notava algum “acento de tristeza exaltada”, mas que – considerando a grande coerência ou unidade temática da obra poética florbeliana – deverá ser nos leitmotiv que se poderá encontrar alguma variante.
          Integrando no seu discurso o lema visível na parede na sala – “Conhece-te a ti mesmo”, a inscrição do templo de Apolo, em Delfos, J. C. Fernández enfatiza a importância de o ser humano conhecer o sentido profundo das coisas; conhecer-se a si próprio é conhecer a natureza, o mundo – neste sentido, o pretenso egoísmo e narcisismo de Florbela poderão ser entendidos e revalorizados de outro modo: uma mulher escritora que enceta uma busca profunda das coisas; uma poetisa que focaliza os seres e o mundo não de fora, mas através do interior – ela é uma princesa de quimeras, uma “eleita de alma”.
          Segundo o investigador e biógrafo da poetisa, um dos grandes dramas da vida e da obra de Florbela pode ser encontrado na dicotomia entre aquilo que se sonha e aquilo que se vive; a ideia platónica de que este não é o nosso mundo, de que aqui estamos exilados. Fernando Pessoa reconhecerá a singularidade da alma de Florbela, como a sua, num poema que lhe dedica: “alma sonhadora / irmã gémea da minha!”, uma alma esvoaçando acima das multidões “à procura de mundos novos / mais belos, mais perfeitos, mais felizes.” Aí parece residir – segundo J. C. Fernández –  a natureza mística, a religiosidade profunda de Florbela Espanca: uma alma que sonha, que quer, que pede um mundo outro.

4.     A descoberta: seis sonetos florbelianos


Aurélia Borges e Jose Carlos Fernández
Fonte da fotografia:  “post” in TriploV Blog.
   
          Desde menina e ao longo da sua vida, Florbela (Bela, para os familiares e amigos) terá presenteado os seus destinatários de carteio – de cartas e postais – com poemas de sua autoria. O mesmo terá ocorrido com as suas antigas alunas, com quem manterá amizade mesmo após o período de lições. As discípulas copiavam então os belos poemas recebidos e partilhavam-nos entre si. Foi por essa razão que os seis sonetos agora divulgados e até hoje inéditos da autora do Livro de Soror Saudade (1923) estiveram durante décadas na posse de uma das suas antigas alunas, a professora e poetisa Aurélia Borges, atualmente com 98 anos.
         Severina Gonçalves descobriu estes textos na sequência de um trabalho de investigação sobre a obra da escritora. Não tendo sido ainda por ela editados, pensa-se que estarão em breve disponíveis para consulta na página da Associação Nova Acrópole de Lisboa.
          “A Exilada”, “Velhinha e Moça” e “Riso amargo” são títulos de três desses textos que foram agora recuperados. Nos diversos depoimentos difundidos nos meios de comunicação social, a autenticidade dos poemas é considerada incontestável pela investigadora referida e pelo conferencista.

5. O recital

          Naquele lugar elevado, após a entrada jovial de um grupo de declamadores, fez-se ainda mais silêncio: chegara o momento tanto aguardado, conhecer outros versos da genial poetisa.
          De facto, inicialmente ouviram-se declamar textos florbelianos –  os já conhecidos e incessantemente frescos, em vozes femininas e em vozes masculinas, ora em tonalidades doces ora em entoações arrojadas ou deveras acentuadas – polifonia harmoniosa do Grupo de Poesia Florbela Espanca da Nova Acrópole. E como é bom deixarmo-nos enlear no supremo e mago canto de Bela, voar nas imagens sugestivas de sua alma criadora.
          Assinalando ainda o aniversário da vida e da morte de Florbela Espanca, escutaram-se então os seis sonetos recuperados ao esquecimento. Aqui fica registado um: 

RISO AMARGO

                    Num desafio temerário e forte,
                    Eu quero rir da vida, altivamente,
                    Da vida que é combate, luta ingente,
                    Nesta comédia dum viver sem norte.

                    Quero rir da desgraça e da má-sorte
                    Que nos fere e persegue tenazmente.
                    Rir do que é baixo e vil, amargamente,
                    Do que é soluço e dor… E até da morte!

                    De tudo rir! Que mais posso fazer?...
                    Se a podridão de charco jamais volta
                    À limpidez das fontes a correr…

                    Quero rir!... E o meu riso é um esgar,
                    Um grito de impotência e de revolta!
                    Rir! Quero rir!!
                                                … E apenas sei chorar!


O sorriso de Florbela
Lisboa, 17.03.1918 [aos 23 anos]

6.     Referências





José Carlos Canoa
08.12.2013