27/03/2014

E Florbela é "cisne e lírio e águia e catedral" no livro de poemas que é a tua vida



Sainte Chapelle, Paris

O MEU MAL

A meu irmão

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste e caravela e dor!

Fui tudo que no mundo há de maior;
Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...

Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...

Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
Mágoa não sei de quê! Saudade louca!

Florbela Espanca
in Livro de Sóror Saudade (1923)



Fonte:
In: ESPANC, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 106.

25/03/2014

FLORBELA ESPANCA, O FLAMEJAR DE UMA ESTRELA


Florbela Espanca – A hora que passa

Solo teatral inspirado na vida e obra de Florbela
de 21 de março a 27 abril de 2014

 Pesquisa e atuação: Lorenna Mesquita
Direção: Fabio Brandi Torres
Dramaturgia: Lorenna Mesquita e Fabio Brandi Torres

Supervisão de dramaturgia e assistência de direção: Luis Eduardo de Sousa

Iluminação: Fabio Brandi Torres
Fotografia artística: Vagner Click
Realização e Produção: Srta. Lô Produções
Duração: 50 minutos. 
Classificação: M/14 Anos




Estreou em Portugal no Dia Mundial da Poesia (21 de março) e encontra-se em digressão até 27 de abril por diversas regiões do país [ver em baixo o agendamento do evento] o espetáculo Florbela Espanca – A hora que passa, concebido e realizado por um grupo de artistas brasileiros.

O solo teatral interpretado pela atriz Lorenna Mesquita configura a última hora de vida da escritora alentejana e lusófona Florbela Espanca [1894-1931, nascida e falecida a 8 de dezembro], celebrizada pelos seus geniais sonetos e também pela sua plena encarnação de um ser que viveu intensamente o amor como um sentimento também descontente e dilacerante.



Nas sinopses divulgadas, antecipa-se que a Poetisa «discorre sobre si mesma e questiona o papel da mulher na década de 20, com reflexões que ainda cabem para os dias atuais» e elucida-se que a dramaturgia foi construída a partir dos trechos pessoais do Diário do Último Ano de Florbela, articulados com os «poemas, contos e cartas escritos ao longo da sua breve e intensa vida, uma obra repleta de amor e dor.»

Lorenna Mesquita representando Florbela

de Fabio Brandi Torres, no Facebook, nov. 2013.


O projeto teatral «nasceu do desejo e da determinação» de Lorenna Mesquita, que pesquisou e reuniu trechos de Florbela – a talentosa atriz já participara, com grande apreço do público, na “Semana Florbela Espanca” realizada na Casa de Portugal de São Paulo, em dezembro de 2013 –, e concretizou-se com a direção de Fabio Brandi Torres, assistida por Luis Eduardo de Sousa, ambos dramaturgos do Centro de Dramaturgia Contemporânea. O CDC é um grupo de pesquisa dramatúrgica, criado em São Paulo em 2006, que também privilegia a criação livre dos seus componentes e que tem fomentado as relações luso-brasileiras desde 2012, com o projeto “Capitanias dramatúrgicas”, desenvolvido em Coimbra, e que tem como finalidade «reaproximar a dramaturgia dos dois países e realizar discussões com dramaturgos, atores e pesquisadores portugueses».

Como é divulgado no perfil do Facebook da atriz, atualmente, Lorenna Mesquita está em Portugal, contemplando também no seu itinerário Vila Viçosa, berço de Florbela, «interagindo com as comunidades lusas em várias cidades, apresentando o solo teatral "Florbela Espanca – a hora que passa"», a hora trágica e flamejante de uma verdadeira estrela. Com este espetáculo, a atriz e sua equipa dramatúrgica «está comovendo os portugueses ao divulgar a obra literária dessa valorosa poet[is]a, nascida no final do século XIX, uma mulher muito à frente de seu tempo.» Uma Poetisa que teve «de mil desejos o esplendor» e continua sendo um «astro que flameja».



AGENDA DAS APRESENTAÇÕES

DE

FLORBELA ESPANCA - A HORA QUE PASSA 

HORÁRIO
LOCAL


21 março
Santarém
23 março
Viseu
Instituto Port. do Desporto e Juventude
V. cartaz.
26 março
Oliveira de Frades
Museu Municipal.


ESTE FIM-DE-SEMANA:

28 março| sex. 19h




29 março| sáb. 21h30


Ourém
Museu Municipal / Casa do Administrador
Largo Dr. Vitorino de Carvalho, n.º 14.
+ Informação.


Setúbal
Casa da Cultura: Sala José Afonso
Reservas para tel. 265 236 168
Org. Câmara Municipal de Setúbal e
Srta.Lô Produções (Brasil).
+ Informação.


30 março | dom., 16h
Porto
Casa Allen
Rua António Cardoso, n.º 175.
Tel. 22 6000 454
+ Informação

EM ABRIL: (iremos completando esta inf., obrigado)

3 abril | quinta  
Canas de Senhorim

4 abril | sex.  
Mangualde

5 abril | sáb. 21h30
Carregal do Sal
Centro Cultural
6 abril | dom.
Mêda

11 e 12 abril | sex. e sáb.
Vila Viçosa

23 e 24 abril | quarta e quinta
Coimbra

25 abril | sex.
Sintra

27 abril | dom.
Cascais



21/03/2014

PRIMAVERA, um soneto de Florbela anunciando a estação do Amor


"O nascer da Primavera" - pormenor de Flora
por Sandro Botticelli


É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!

Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!

Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...

Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...

Florbela Espanca
("Reliquiae", parte anexa por Guido Battelli, à
 2.ª edição de Charneca em Flor (1931)





Referência:
In: ESPANCA, Florbela - Obra Poética, volume II, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 172.

Alma perdida, soneto de Florbela, dos mais divulgados nos manuais escolares



Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!...


Florbela Espanca, 
in Livro de Mágoas, 1919



Referêencia:

In: ESPANCA, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 76

SER POETA

Le domaine enchanté II, 1953 – René Magritte


Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oir
o e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!


Florbela Espanca

in Charneca em flor, 1931



Referêencia:

In: ESPANCA, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 162.


18/03/2014

O espólio de Florbela Espanca: quatro coleções

21 mar. - 17 abr. 2014


O espólio de Florbela Espanca: quatro coleções



À memória de Rui Guedes



(1) O Espólio documental Florbela Espanca na BPE

          No âmbito das atividades de celebração do Dia Mundial da Poesia, a Biblioteca Pública de Évora (BPE) divulga o espólio da poetisa Florbela Espanca, quer na sala de exposições quer no “site” da biblioteca, a partir de 21 de março.
        
          Esta coleção de documentos compreende manuscritos autógrafos (um caderno com dezoito sonetos, entre os quais «Ser Poeta»), iconografia e material concernente ao falecimento da poetisa aos 36 anos de idade. Destaca-se o conjunto de cartas de Florbela a Guido Battelli, carteio trocado nos últimos seis meses da sua vida, e que permitiu a Rui Guedes, na edição das “Obras Completas de Florbela Espanca”, recuperar os textos originais sem a montagem forjada pelo primeiro editor e admirador, o professor Guido Battelli.

          A exposição propriamente dita, na Biblioteca Pública de Évora, apresenta, de 21 de março até ao dia 17 de abril, uma mostra bibliográfica com parte desta documentação, acrescida de poemas publicados avulsamente em jornais e revistas e ainda os romances franceses cuja tradução foi da autoria da poetisa. Esta iniciativa de divulgar documentos de valor editorial, mas também simbólico e afetivo, da escritora alentejana contribuirá para um avanço significativo dos estudos florbelianos e, obviamente, será mais um motivo de satisfação para os leitores e verdadeiros fãs de Florbela. Aguarda-se a sua divulgação online e espera-se – espero eu, que provavelmente lá não poderei ir! – que os visitantes da mostra em Évora partilhem as suas impressões ou descobertas, nos vários locais de convívio com a vida e a obra de Florbela Espanca, como as redes sociais e a blogosfera.


          Todavia, esta coleção agora em mostra e que está ao cuidado da Biblioteca Pública de Évora constitui tão-somente um dos quatro acervos atualmente conhecidos da Poetisa. Alguns deles integram não apenas documentos mas também objetos de Florbela. Vejamos, de modo sintético, esses espólios.

(2) O Espólio do "Grupo Amigos de Vila Viçosa"

          O espólio de Florbela Espanca, propriedade do “Grupo Amigos de Vila Viçosa”, foi doado ao grupo pelo médico e último marido de Florbela, Mário Lage, e veio diretamente da casa do casal em Matosinhos. A doação do acervo ocorreu aquando da homenagem à poetisa em 1964, estando esta cerimónia igualmente documentada nesta coleção.
          Este espólio abrange cerca de cinquenta e cinco documentos e objetos pessoais e está a ser tratado no âmbito de um projeto da Universidade Évora, divulgado online sob o título  Florbela Espanca: o Espólio de um Mito, onde surge designado como Espóliode Vila Viçosa. O inventário foi elaborado de acordo com as normas e categorias estabelecidas pelo Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e está acessível online, bem como algumas das imagens dos documentos digitalizados.

(3) A “Coleção Florbela Espanca” na BNP

          Outra Coleção Florbela Espanca, bastante conhecida e consultada, encontra-se depositada na Biblioteca Nacional de Portugal, integrada no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea (Esp. N10).
          Rui Guedes, o editor das “Obras completas de Florbela Espanca” em oitos volumes – incluindo a Fotobiografia e o completíssimo Acerca de Florbela: biografia, bibliografia, apêndices, discografia e índice remissivo geral, livrinho que todos usam mas poucos referem – descobriu este espólio. Florbela, antes de deixar António Guimarães para ir viver com Mário Lage, oferecera à sua cunhada todas as suas coisas queridas e estas permaneceram, guardadas ou esquecidas, num sótão cerca de seis décadas; em 25.10.1982, já em posse do neto dessa senhora, na sua casa em S. João do Estoril, são adquiridas por Rui Guedes.
          Este espólio, contendo cerca de 39 documentos, está devidamente inventariado e digitalizado, disponível ao público em microfilme e online, e espelha a produção poética de Florbela entre 1915 e 1922, incluindo os autógrafos de primeiras e segundas versões dos seus poemas, algumas cartas e documentos biográficos. Veja aqui o resumo.

(4) O “Espólio Florbela Espanca” na BMFE

          Finalmente, outro precioso “Espólio Florbela Espanca” encontra-se à guarda da BibliotecaMunicipal Florbela Espanca de Matosinhos, terra em que a poetisa viveu com Mário Lage e onde viria a falecer. Os documentos deste acervo integram os Espólios de Escritores do arquivo da biblioteca e já se encontram inventariados: a sua catalogação está acessível no catálogo online da biblioteca [pesquisar com palavra-chave “Florbela Espanca” e ordenar por “data de publicação”]. Compreende iconografia, manuscritos da autora, epistolografia e outros documentos pessoais ou de terceiros. Este espólio foi adquirido pela Câmara Municipal de Matosinhos, em 2006, à filha da escritora e biógrafa da poetisa, Maria Alexandrina, que já o recebera do segundo marido de Florbela, António Guimarães. Não admira, pois, que do conjunto de cartas desta coleção tenha sido composto o volume de Maria Lúcia Dal Farra – Perdidamente: correspondência amorosa 1920-1925 (2009).

***

          Notícias, artigos, teses académicas sobre a obra e a vida de Florbela Espanca continuam a ser redigidos, divulgados e lidos numa dinâmica espantosa e a uma escala global; encontros, colóquios e exposições – como esta agora na Biblioteca Pública de Évora, vão ocorrendo, com interesse renovado, despertando o amor crescente pelo pensar e sentir de uma mulher da primeira metade do século XX português, que é atualmente um fenómeno nas redes sociais – o seu nome, o seu rosto e os seus poemas são mais conhecidos e celebrados que o de muitos escritores canonizados pela crítica ou a Academia.
          Urge um inventário sistemático e rigoroso da bibliografia ativa (textos em volume e avulsos, éditos e manuscritos), articulando os quatro espólios atualmente conhecidos da Poetisa. Igualmente, sente-se a carência de um levantamento, o mais exaustivo possível, da fortuna crítica sobre a obra da poetisa, de modo a permitir avaliar o que já foi dito e assim abrir caminho a novas ou mais ousadas interpretações dos seus textos, líricos, narrativos e epistolares; dos sonetos mas também das quadras ao gosto popular.

JCCanoa


 Para saber mais

08/03/2014

CASTELÃ DA TRISTEZA, soneto de Florbela Espanca

Livro de Horas para o uso de Amiens. Picardia, séc. XV

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês?... A quem?...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr...
Chora o silêncio... nada... ninguém vem...

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?...

À noite, debruçada, p’las ameias,
Porque rezas baixinho?... Porque anseias?...
Que sonhos afagam tuas mãos reais?...

Florbela Espanca




Referêencia:

In: ESPANCA, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 59.

O «EU» de Florbela

Imagem in: Hoje na Historia - JBlog - Jornal do Brasil

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo p’ra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca


Referêencia:

In: ESPANC, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 58.

"Vaidade" de Florbela ou «a Poetisa eleita" pelos leitores

Florbela, em Évora - 1916.

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... 

                                          E não sou nada!...

Florbela Espanca





Referêencia:
In: ESPANC, Florbela - Obra Poética, volume I, de "Obras de Florbela Espanca" - org. e notas de José Carlos Seabra Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 2009, p. 57.