Carta de florbela, datada de Lisboa, 5.09.1922,
enviada ao Apeles, quando este estava no Brasil.
Vídeo integrante da programação da Semana Florbela Espanca, realizada de 8 a 14 de dez. de 2013, diariamente às 19 horas, na Casa de Portugal, São Paulo / Brasil.
Leitura: Lorenna Mesquita
Direção: Fabio Brandi Torres
Direção de fotografia: Claudio Castro
Apoio cultural: Casa de Portugal
Realização: Srta.Lô Produções
Fonte do vídeo e texto informativo (adaptado): "Florbela Espanca" no Youtube
CARTA
Lisboa, 5-9-1922
Meu querido irmão
Tenho esperado notícias tuas, mas decididamente vejo a inutilidade
da esperança, e por isso resolvo-me a conversar um bocadinho contigo, já que há
tanto tempo te não dignas escrever-me. Respondi para o Rio a um postal que me
enviaste de Vitória, primeiro e último testemunho de que ainda te lembras dos
bananas que por aqui vegetam sem festas, sem regozijos, sem apoteoses. Lisboa
neurasteniza, e estou contente que a tua alma vibrante e entusiástica de vinte anos se eleve ao contacto de todas as belas coisas que
vês; isto por cá deve parecer-te, à volta, um túmulo grotesco onde se agitam
larvas. Enfim, já que na vida é sempre preciso voltar, que seja ainda daqui a
muito tempo; já vês que sou muito pouco egoísta, pois a minha razão deseja o
contrário que o meu coração poderia desejar. Sei que te lembrarás, às vezes,
duma irmã amiga que está ansiosa por te ouvir contar muitas coisas inverosímeis
à força de ser belas. O teu riso, a tua força de viver, dar-me-iam uma grande
felicidade, acredita. Que extraordinário ente tu és! Artista vibrante e
sensível, compreendendo tudo, achando em tudo vida e emoção, tu com tudo isto
realizas o milagre magnífico de teres nervos equilibrados sem coisa alguma de
doentio, sem coisa alguma de mágoa. Que diferentes nós somos, não achas? Ou
talvez sejamos parecidos e só me falte a mim a livre expansão de todas as
forças da alma, comprimidas pelas mil engenhocas deste complicado mecanismo que
é a vida. O que é certo é que eu, que esqueci há muito o riso são e verdadeiro,
gosto de te ver rir e assim te vi ontem pelas 10 h. da noite. Não vás imaginar
que endoideci, mas pensa muito simplesmente que vi no Cinema Condes a fita do raid Lisboa-Brasil. Não vi mais ninguém,
decerto porque ninguém mais me interessava a não ser o Peles lindo. Dançavas como
um entrain verdadeiramente diabólico.
A pobre da pequena de vestido de rendas não chegava ao teu ombro! Que esforço
para conseguir passar-te da cintura! Bonita era, na verdade, e, como sempre,
tens bom gosto apesar de as escolheres sempre anatomicamente imperfeitas... Não
te escames que isto não é verdade pequenina, mas gentil e bem feita, o novo flirt do Peles.
Estás sempre a rir e pareces-me ainda mais preto, mas mais
magro, é verdade? Quantas coisas tu me contarás! Tu sabes que a irmã poetisa
compreende todas as emoções e todas as loucuras da tua alma. A pobre Rosine tem
escrito sempre, e eu tenho-lhe respondido, mas, se bem que me faça insinuações
frequentes a teu respeito, evito responder-lhe por discrição, pois não sei o
que quererias que ela soubesse a teu respeito e, assim, na dúvida, não lhe digo
nada. Às vezes, falando indiferentemente e sem intenção, pode fazer-se tolice.
Se puderes, escreve, sim? O António envia-te um abraço e,
como eu, deseja-te muitas, muitas coisas boas.
Lembranças minhas ao Castelão.
Um grande abraço muito apertado e com saudades da
Bela
A mãe Mariana está cá e também se recomenda ao Peles.
Fonte: ESPANCA, Florbela – Cartas e diário, org., introd. e notas de Rui Guedes. Lisboa:
Bertrand, 1995, pp. 132-133.