O dia do casamento de Bela com Alberto Moutinho
8 de dezembro de 1918
É também o aniversário da poetisa: tem 24 anos.
Onde estás ó meu amor,
Que te não vejo apar’cer?
Para que quero eu os olhos
Se não servem pra te ver?
Que m’importa a luz suave
Dos olhos que o mundo tem?
Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.
(primeiros versos)
Ler aqui o conjunto destas quadras:
[1]
Andam
sonhos cor do mar
Nas
minhas quadras, imersos,
Se queres
comigo sonhar,
Canta
baixinho os meus versos.
[2]
Saudades
e amarguras
Tenho eu
todos os dias,
Não podem
pois adejar
Em meus
versos, alegrias.
Saudades
e amarguras
Tenho eu
todas as horas,
Quem
noites só conheceu,
Não pode
cantar auroras.
[3]
Se é um
pecado sonhar
Tenho um
pecado na vida,
Peço a
Deus por tal pecado
A
penitência merecida.
Quando o
meu sonho morrer
(Que
penitência tão dura!)
Vá
encontrar em teu peito
Carinhosa
sepultura.
[4]
Onde
estás ó meu amor,
Que te
não vejo apar’cer?
Para que
quero eu os olhos
Se não
servem pra te ver?
Que
m’importa a luz suave
Dos olhos
que o mundo tem?
Não posso
ver os teus olhos
Não quero
ver os de ninguém.
[5]
Tens um
coração de pedra
Dentro
dum peito de lama
Pois nem
sabes distinguir
Quem te
odeia ou quem te ama.
Por uma
que te despreza,
Teu
coração endoidece,
E a pobre
que te quer bem
Só teus
desprezos merece!
[6]
Desde que
o meu bem partiu
Parecem
outras as cousas;
Até as
pedras de rua
Têm
aspectos de lousas!
Quando
por acaso as piso,
Perturba-me
um tal mistério!...
Como se
pisasse à noite
As pedras
dum cemitério...
[7]
Teus
olhos têm uma cor
Duma
expressão tão divina,
Tão
misteriosa, tão triste,
Como foi
a minha sina.
É uma
expressão de saudade
Vogando
num mar incerto.
Parecem
negros de longe,
Parecem
azuis de perto.
Mas nem
negros nem azuis
São teus
olhos, meu amor,
Seriam da
cor da mágoa
Se a
mágoa tivesse cor!
[8]
Nem o
perfume dos cravos,
Nem a cor
das violetas,
Nem o
brilho das estrelas,
Nem o
sonhar dos poetas,
Pode
igualar a beleza
Da
primorosa flor,
Que abre
na tua boca
O teu
riso encantador.
[9]
Levanta
os olhos do chão,
Olha de
frente pra mim
Fingindo
tanto desprezo,
Que podes
ganhar assim?
Não andes
tão distraído,
Contando
as pedras da rua,
Não sei
pra que finges tanto...
Tu és meu
e eu sou tua...
Levanta
os olhos do chão.
Que podes
ganhar assim?
Se Deus
nos fez um pro outro,
Para que
foges de mim?!
[10]
Coveiros,
sombrios, desgrenhados,
Fazei-me
depressa a cova,
Quero
enterrar minha dor
Quero
enterrar-me assim nova.
Coveiros,
só o corpo é novo,
Que há
poucos anos nasceu;
Fazei-me
depressa a cova
Que a
minha alma morreu.
[11]
Amar a
quem nos despreza
É sina
que a gente tem;
Eu
desprezo quem m’odeia
E adoro
quem me quer bem.
[12]
Ai,
tirem-me o coração
Que o
tenho todo desfeito!
Cada
pedaço um punhal
Que trago
dentro do peito.
[13]
Eu quero
viver contigo
Muito
juntinhos os dois
O tempo que
dura um beijo,
Embora eu
morra depois.
[14]
Meu
coração é ruína
Caindo
todo a pedaços,
Oh,
dai-lhe a hera piedosa
Bendita
desses teus braços!
[15]
Quando
fito o teu olhar
Tão frio
e tão indiferente,
Fico a
chorar um amor
Que o teu
coração não sente.
[16]
O fado
não é da terra,
O fado
criou-o Deus,
O fado é
andar doidinha
Perdida
p’los teus.
[17]
Esmaguei
meu coração
Para o
triste te esquecer,
Mas ao
sentir os teus passos,
Põe-se a
bater... a bater...
[18]
Andam
pombas assustadas
No teu
olhar, adejando,
Mal
sentem os meus olhos,
Batem as
asas, voando.
[19]
Há sonhos
que ao enterrar-se
Levam
dentro do caixão,
Bocados
da nossa alma,
Pedaços
de coração!
FLORBELA ESPANCA
«As quadras d’Ele» [I], poema constituído por 30 quadras, escrito a 12.02.1916.
In: GUEDES, Rui (recolha, leitura e notas) – Poesia: 1903-1917 / Florbela Espanca, de “Obras Completas de Florbela Espanca”, vol. 1, Lisboa: Dom Quixote, 1985, pp. 97-116.