Florbela Espanca (Dalila Carmo) em Lisboa.
Imagem do filme "Florbela" (2012) dir. Vicente Alves do Ó.
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Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?
Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?
Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?
Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
— Sem nos dar braços para os alcançar?!...
FLORBELA ESPANCA - «?» in Charneca em Flor (1931)
1 – O passeio pela Graça
No Youtube, publicado por: Galeria de Arte Urbana, 26.o1.2015
O “Passeio Literário da Graça” permite conhecer a ligação deste bairro histórico lisboeta (o Bairro Estrela d’Ouro, a Vila Sousa, a Vila Berta) com figuras da história da literatura portuguesa como Natália Correia, Angelina Vidal, Sophia de Mello Breyner e Florbela Espanca.
O projeto “Fachadas Cheias de Graça” foi coordenado pela associação EBANO e, entre abril e junho de 2014, possibilitou a intervenção dos artistas Eime, Leonor Brilha, Lorenzo Bordonaro, Mariana Dias Coutinho, MrDheo, Pariz One, Violant (intervenção promovida pela associação MEDS). O visitante pode descobrir, assim, obras em alguns muros e paredes do património arquitectónico da Graça que lembram e homenageiam figuras ilustres e simultaneamente melhoram o aspecto do bairro da capital.
O mural de Mariana Dias Coutinho e o percurso literário começam na esquina de um muro na Travessa do Monte em que está visível o célebre soneto de Florbela Espanca «Ser Poeta».
Seguem-se as imagens de poetisas portuguesas: antecedida de Sophia junto à imagem da sua Fada Oriana e seguida pelo retrato de Natália, esta fumando a sua boquilha, surge Florbela – «com todo o seu coração, o seu amor amor amor, os seus enamorados» (observação da artista). Angelina Vidal fecha este conjunto mural.
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Mural de Mariana Dias Coutinho - pormenor: Florbela Espanca |
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"Brainstorm" de Violant, contendo sonetos de Florbela Imagem de Miguel Monteiro no sítio Arca de Darwin |
Um outro espantoso mural, agora da autoria de Violant (i.e., João Maurício), homenageia a poetisa Florbela Espanca. A intervenção intitulada “Brainstorm”, configurando algo entre árvore do saber poético e planeta azul de sementes da vida - melhor ver do que explicar!, situa-se na rua Natália Correia, mas os versos que alimentam as páginas do livro-árvore do conhecimento são os amados sonetos da autora de Charneca em Flor: «?» [“Quem fez ao sapo o leito carmesim”], o terceiro soneto [«Frémito do meu corpo a procurar-te»] da série de sonetos sob inspiração camoniana «É um não querer que mais bem querer», «Nervos de oiro», «Árvores do Alentejo». Reproduzimos aqui um desses sonetos reconfigurando a simbologia da árvore.
ÁRVORES
DO ALENTEJO
Horas mortas... Curvada aos pés
do Monte
A planície é um brasido... e,
torturadas,
As árvores sangrentas,
revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma
fonte!
E quando, manhã alta, o sol
posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas
estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que
choram,
Almas iguais à minha, almas que
imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e
vede:
— Também ando a gritar, morta de
sede,
Pedindo a Deus a minha gota de
água!
O mistério da criação artística como um livro aberto a interpretações, presente nesta obra, é explanado pelo artista deste modo:
«Este mural é dessa origem de imagens que apelam à imaginação do espectador, solicitando-o a tomar propriedade da imagem, fazendo-a sua, num movimento ininterrupto que vai do criador ao público. Uma ponte invisível ligará, então, o mistério da criação ao da significação. Apenas os murmúrios do espectador podem unir os sugeridos caminhos para que os elementos da imagem remetem. Talvez surjam ecos, feitos homenagens ou reminiscências aos vultos dos escritores que habitaram em paredes próximas, cujo chão das ruas conheceram. Uma evocação que não regula o devaneio, mas serve como seu impulsionador. Apresenta-se sob a forma de sonho do pintor, a qual apenas demanda: imaginação ao observador, um livro aberto.»
2 - Florbela Espanca em Lisboa: 1917-1923, 1927
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Faculdade de Direito de Lisboa, no Campo de Santana (hoje Embaixada da Alemanha) Fotogr. in GUEDES, Rui: 1985. |
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Florbela, cerca de 1917 (22 anos) |
Neste
tempo de guerra mundial, quando Florbela vem viver e estudar para a
capital, ela é uma jovem de 22 anos anos, casada desde 1913 com o seu colega da
escola primária, Alberto Moutinho, e que embora intua o valor do seu talento
poético ainda não o viu devidamente confirmado pela publicação de um livro. A
cidade de Lisboa será o enquadramento para a sua estreia literária com o Livro de Mágoas (1919), editado por Raul Proença e
financiado pelo pai da poetisa: é na Rua do Salitre, 102 A, que se localizava a
Tipografia Maurício que imprimiu a sua coletânea de sonetos. Na Faculdade de
Direito, é uma das catorzes mulheres matriculadas num curso
maioritariamente frequentado por homens.
Aí conhecerá, entre outros, Américo Durão (1894-1969) que tanta importância virá
a ter na sua revelação e identidade poética. Através do seu irmão Apeles
conhece a vida artística de Lisboa, visitando exposições e indo a festas e outros eventos da capital.
Em março de 1918, Florbela faz um aborto involuntário e Henriqueta de Almeida,
a sua segunda madrasta, vem para Lisboa tratá-la. Para repousar, no mês
seguinte, Florbela vai com o
marido para Quelfes, perto de Olhão, no Algarve, permanecendo o casal hospedado
em casa de Doroteia Moutinho. O médico que a trata fala-lhe da gravidade da
doença e anunciam-se então os indícios de neurose.
Quando se sente melhor, estando a desentender-se com o marido e não tolerando mais o
Algarve, Florbela vem sozinha para Lisboa e matricula-se no 2.º ano da
Faculdade de Direito. Durante esse período, vive praticamente separada do marido, que continua no
Algarve, dando lições em Olhão.
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António Guimarães Fotogr. in GUEDES, Rui: 1985. |
Quase dois anos depois, em março de 1922, Florbela e o
marido voltam para Lisboa, indo viver para uma quinta na Amadora, propriedade
de um parente de António Guimarães, onde vivem cerca de quatro meses.
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Rua Josefa d’Óbidos, nº 24, 4.º, 4º piso, em Lisboa. Fotogr. in GUEDES, Rui: 1985. |
Em junho de 1922, Florbela muda-se para uma habitação na
zona da Graça, na Rua Josefa d’Óbidos,
nº 24, 4.º, 4º piso.
Florbela
publica a sua segunda obra, o Livro de Soror
Saudade (1923), dá explicações de Português a quatro alunas – Aurélia Borges, que lhe
consagrará vários estudos, Helena Graça dos Santos, Maria do Céu Amaro dos
Santos e Lídia Aguiar do Amaral –, na residência da Lídia, na Rua Braamcamp, n.º
25. Em novembro desse ano sofre um segundo aborto involuntário, encontrando-se num estado
de grande debilidade. Para se tratar, Florbela sai de Lisboa e fica
hospedada em Gonça, perto de Guimarães, numa quinta de familiares. Esta ida será igualmente a
sua separação de António Guimarães (divórcio a 23.06.1925).
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Florbela (Dalila Carmo) e o irmão Apeles (Ivo Canelas) numa cena do filme "Florbela" (2012) dir. Vicente Alves do Ó. |
Em junho de 1927, Florbela Espanca está em Lisboa, quatro
dias que antecedem a trágica morte do seu irmão, agora piloto-aviador e que se
despenhou durante um voo de treino no hidroavião Hanriot 33 no rio Tejo, a 6 de junho desse ano. É uma mulher de 33
anos, casada agora com o médico Mário Laje (1893-19), traduz romances franceses
para a Livraria Civilização do Porto, colabora com poemas no jornal D. Nuno de Vila Viçosa, dirigido por
José Emídio Amaro, prepara uma nova coletânea de poemas, Charneca em Flor (1931), e escreve vários contos que agrupará em O Dominó Preto (publicado apena em 1982).
Local de estudo universitário, residências várias, mas
também de convívio e tertúlia cultural, cenário de amizades e enamoramento, Lisboa foi também túmulo para o corpo
de seu irmão Apeles. Especificamente, no n.º 24 da rua Josefa d’Óbidos, à
Graça, da mansarda com janela aberta sobre o céu de Lisboa, criou sonetos como
«O meu orgulho», «A vida», «Tarde demais…».
A VIDA
É vão o amor, o ódio, ou o
desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés
d'alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!
Todos somos no mundo um “Pedro
Sem”,
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum
lamento,
Sabe-se lá um beijo donde vem!
A mais nobre ilusão morre...
desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já
perdida...
Amar-te a vida inteira eu não
podia...
A gente esquece sempre o bem dum
dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a
Vida!...
Fontes:
- MONTEIRO, Miguel - «Bairro da Graça, Violant e Florbela Espanca», in Arca de Darwin – sítio, 9.04.2015.
- «O 'Passeio Literário da Graça' em construção», por João Maurício, no seu perfil no Facebook.
- «Artist: Violant», álbum de obras, in STREET ART SAVE MY LIFE / Urban Artists under Protection, no Facebook.
- «Passeio Literário da Graça», in EBANOCollective, desenvolve projetos colaborativos de arte pública, organiza visitas guiadas ao percurso e atividades didáticas.
- «Passeio Literário da Graça - BIP ZIP», partilhado por GAU – Galeria de Arte Urbana, no Youtube, 26.o1.2015.
- VICENTE, José - «Arte Urbana: Graça presta homenagem a escritores», in Boas Notícias [digital], 14.05.2014.